31 de mar. de 2010

Terremoto

Pediu pra que eu ficasse. Aceitei mais por não saber dizer não que por qualquer outro motivo. Falamos sobre astrologia, sexo tântrico, dança do ventre, amores passados. Interrompi o monólogo e levantei, anunciando outra vez minha partida. Fez cara de triste e foi ao quarto apanhar um casaco para me acompanhar até o portão.

Minuto depois, vi você voltar completamente nua à sala, empurrar-me de volta à poltrona, amassar com as suas coxas as minhas e dizer coisas sobre paixão.

Paixão – pensei eu – um dia acaba; um dia não muito distante, supus. E o que resta depois? Com quais palavras nos despediremos quando não houver mais “fica”?, quando a história dessa noite fria entrar para o hall dos amores passados?

Pensei, mas não disse. Permiti e me deixei levar. Ano mais tarde levantei da mesma poltrona e anunciei que partiria para não mais voltar. Você foi ao quarto e voltou de casaco (aquele verde que eu detestava). Acompanhou-me até o portão. Não dissemos palavra e não mais voltamos a nos encontrar. Aquela noite cheguei em casa com um ano de paixão rasa socado em uma sacola da Levi’s.

26 de mar. de 2010

Jardins

Não há mais razão para falar de você, como nunca, de fato, houve (descobri isso, tarde da noite, um ano e um dia depois de te conhecer em baixo daquele toldo chuvoso na Bela Cintra) mas ainda assim insisto em guardá-la em minha mente, como um amuleto ou um mau costume.

Comuns os dias em que, andando na sempre populosa Cidade, sinto um desejo incontrolável de esbarrar por acaso em você. Sei que uma entre as incontáveis mulheres ofegantes a caminhar pelas ruas dos Jardins é você - que gosta de alternar corridinhas e caminhadas, movendo-se de um jeito divertido, como se apreciasse cada passo, mas ao mesmo tempo com um semblante introspectivo: você corre remoendo as notícias que ouviu no rádio durante o café da manha.

Eliminando da rua todas os carros, talvez fique mais fácil te encontrar. Faço isso sem remorso, pouco me importando com o destino dos motoristas. Para garantir melhor visibilidade, elimino os carros estacionados também. Em um piscar de olhos mando embora os ônibus, com todos os rostos cinzentos de rotina colados nas janelas - porque com você a rotina era impensável e mesmo sentados mil vezes a ver o mesmo filme nos mesmos lugares do sofá, tudo era inédito e o segundo seguinte um eterno mistério.

Ainda no mesmo impulso, faço sumir os homens todos e as mulheres com menos de 20 e mais de 25. Dentre as mulheres restantes, deixo ficar as que caminham sozinhas (sem cachorros nem amigas), usam calças pretas de ginástica e ostentam longos cabelos ruivos.

Você surge virando uma esquina a 30 metros de distância: Adidas preto, faixa roxa nos cabelos, camiseta branca...aquela andar divertido.

Assim que tomo fôlego para gritar seu nome, um ipê amarelo te esconde. Temo. Você ressurge ainda mais linda e tenho certeza de que retocou a maquiagem enquanto estava atrás da árvore. A pele branca, o sorriso seguro de quem não se surpreende com facilidade, o sol ressaltando a pequena cicatriz do lápis que entrou no seu rosto.

Pára ao meu lado e diz, com naturalidade, "preciso devolver aquela tua gravata" . Pergunta como foi em Londres e, antes de ouvir a resposta, volta a correr dizendo que vai se atrasar para a aula de flauta. Passos depois fala mais quatro ou cinco palavras que ouço misturado à buzina de um carro.

Os elementos voltaram à Cidade e o encontro nunca ocorreu. A garota do andar divertido suicidou-se anos antes, por razões desconhecidas até hoje. Dizem testemunhas (o porteiro e uma moradora) que, milésimos de segundo antes de cair disforme no chão, cobriu com as mãos o rosto como de praxe fazem os suicidas.

Epílogo

Ignoro a existência de alguém que viva na mais completa inocência da verdade; alguém que, a exemplo das mais sacras figuras humanas, nunca mentiu. Não escrevo, entretando, na inútil tentativa de justificar essa falha tão comum à pessoa humana. Menos ainda quero expurgar das sociedades o valioso artifício que há tanto me acompanha.

Darei preferência - mas não exclusividade - à mentira híbrida e meramente recreativa; àquela que não tem a intenção de salvar ou trazer vantagens a quem a conta, mas quer apenas subtrair do mundo mais um fato real, ou acrescentar no mundo dos 'fatos reais' uma prova falsa.