3 de ago. de 2010

Joelhos

Por isso odeio auto-ajuda/consideração/piedade. Principalmente as formas comissivas externadas. Ajuda é a maldiçao do populismo, o assistencialismo, a subversão subliminar da luta. A suruba escancarada do sofismo.

Consideraçao declarada é uma forma covarde de arriscar aproximaçao, uma tentativa forçada de reconhecimento. Piedade é sentimento que nem os santos ousaram de fato experimentar. O que vejo hoje é a piedade ferramental, das associações que figem carregar atribuições constitucionalmente Estatais. O maldito Criança Esperança, a hipocrisia imperialista do 'cansei', as idéias calculadas e pseudo-conscientes do novo paquiderme informativo CQC, do felipe neto. Vendedores que vendem os defeitos evidentes dos parcos produtos alheios.

Por isso o contingentem de filhos da puta consumindo auto-ajuda, espiritismo passivo, cristianismo passivo, budismo, o lucrativo e historicamente 'maltratadinho' judaísmo só faz crescer. E esse tipo de pensamento traz culpa, que gera a piedade, que fomenta o Criança Esperança com o dinheiro maldito de quem nao consegue enxergar que a ajuda da globo é cancer. E o pus dessa anomalia escorre como Xuxa, como Datena, Justin, Serra, Dilma e, principalmente, como a classe média estúpida que acha que ir além e entrar na FUVEST!

26 de jul. de 2010

Maria

Era o único impulso imprevisível naquele amontoado de protocolos de conduta. Sabia o que devia vestir, como devia falar, horas de chegada e saída, procedimentos a serem realizados, particularidades do sistema, siglas internas e outras coisas. Não sabia como me portar à sua frente. Corava ao te encontrar na copa, nos corredores, elevadores e tentava te evitar a qualquer custo.

Mas, também a qualquer custo, arrumava motivos para correr ao seu setor e me afogar no seu perfume, na tatuagem semi visível do seu tornozelo, as mechas do seu cabelo, o seu decote.

18 de jul. de 2010

Galo

Mas minha vida vive um atropelo e parece que eu sou o único que não pode passar mal. Nem encher a cara e curtir a ressaca em paz. Tenho sempre que me preocupar em manter as mentiras, aprimorar desculpas, fingir que não bebo, que não cheiro e não fumo... E assim, mesmo não fumando nem cheirando, acabo gastando tempo tentando imaginar como alguém que não se imagina avaliado a todo momento agiria: finjo que sou natural.

Ainda acordar disposto para ser cobrado; saber demonstrar falso interesse ao ouvir as dicas de autoajuda empresarial que tanto abomino, engolir todo dia um presente cada vez mais ácido e sem graça. A todo momento alguém invade minha atenção, que está vidrada no texto e na música, para sugerir algo, perguntar se estou bem, o que estou fazendo, se estou com fome. ... mas agora senti um doce bom nos lábios e parece que a tensão dissipou um pouco, é a música fazendo efeito. Caso resolvesse reler o texto antes de postá-lo, coisa que não farei, tudo perderia o sentido.

13 de jul. de 2010

O naja

Não podia dizer que era falta do que dizer, afinal, a vida continuava agitada de maneira morna como sempre fora, mas era uma espécie de afasia. Não faltavam fatos, faltava língua para contá-los. Como se a língua mãe já não contivesse os conceitos corretos, ou como se a língua humana, rosada e inquieta, já estivesse tão gasta, tão rígida que não pudesse mais articular.

Foi assim que, sem maiores razões, largou faculdade trabalho cachorro apartamento CPF dívidas – a pagar e a receber – e refugio-se, a princípio por um ano, na casa de praia de uma parente meio surda (tia avó ou alguém igualmente distante).

Na cadência das ondas foi esquecendo do mundo. Os anos viraram: a proposta, três anos depois do um ano planejado, era investir o dinheiro ganhado nos bares em um quiosque próprio. A pele cada vez mais vermelha, o cabelo maltratado de sal, marcas no rosto de tanto sorrir.

Uma proposta boa apareceu e ele se perdeu no litoral.

9 de jul. de 2010

Oro



Acho que não era minha intenção te tomar ali no mato, feito bicho no primeiro cio. Foi você que me fez entrar naquele verde abafado falando que tinha uma trilha pra um casebre de não-sei-quem. Eu não acreditei mas não pensei duas vezes para correr ao teu encalço. Nunca deixaria de te seguir, ainda que você me implorasse, como implorou um dia. Ainda tento imaginar seus passos e em qual grama você tem se entregado nas tardes ensolaradas de sábado.

Daquela tarde em que você foi minha guardo cada marca de arranhão e mordida e, procurando bem, ainda acho grama enroscada no meu cabelo. Na imagem sua que ainda vive em minha mente (miragem esverdeada) seus joelhos continuam vermelhos e você gargalha, exausta, da minha proposta de fugir naquela música.

"Num fusca duas portas, dois amantes."

30 de jun. de 2010

Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes

Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo

25 de jun. de 2010

Regra dos três

No final das contas nós dois estávamos cobertos de razão. Você sempre foi auto-ajuda, não gostava de ver ninguém sofrendo, acreditava nos limites terapêuticos da tristeza humana, nos poderes do pensamento positivo. Preferia filmes leves, levinhos, bobinhos, e, mesmo nestes, evitava demorar o pensamento. Músicas, só aquelas que se encaixam facilmente a qualquer pessoa. (Penso que essa sua mania de querer se encontrar em tudo era um sinal agudo de carência. Ver-se refletida nas músicas simples, na arte de fácil assimilação, nos programas baixo-nível de televisão: coisas que acariciavam seu ego frouxo, defeituoso de nascença.)

Imitava Freitas dos Santos no oportunismo barato e na mornitude; maldita auto-confiança que te fazia acreditar no seu melhor, no melhor do mundo, no meu melhor. E ao mesmo tempo o mundo não passava de um seu-exterior; o universo se curvando à sua boa vontade, à sua segurança comprada na prateleira dos destaques de qualquer livraria, aos frutos que você necessariamente colheria a cada boa atitude. Era seu ego o vórtice de todo o cosmos. Fraternidade, respeito e compaixão utilizados em barganhas mesquinhas. Andava nas rua, fazia os trajetos, mas nunca se via no chão; não era uma igual.

Nunca roubou cerveja e chocolate do mercado, não por caráter ou princípio, mas por que podia ser você, um dia, a dona do mercado.

Eu era o completo oposto e sei que você não fazia idéia disso. Meu desprezo pela honestidade íntima chegou ao ponto de me fazer fingir que éramos iguais só pelo prazer de levar a vida a me enganar e a me ver enganando você. Andava sempre a baixo do chão, olhando o mundo lá no alto como se a regra fosse a desordem que nunca retribui, que não permite eqüidistância, equilíbrio, equivalências. Roubava chocolate/camisinhas/vinho no mercado e, na floricultura, pedia descontos até irritar. No final das contas, tudo, exceto as rosas (que você guardava no copo), acabava misturado dentro de você (fermentando, estourando, martelando, fecundando, embriagando). Minha desordem cafajeste estufando de mentiras a sua axiologia tão distinta da minha. Você não roubava nada com medo de ser roubada, mas nossas penas foram as mesmas. Passamos a vida inteira presos um ao outro, na dança elaborada e precisa das nossas mentiras.

27 de mai. de 2010

Interceptado

" Você sabe que as vezes, na rua, sinto vontade de falar com alguém e me vem à mente o dia em que a gente saiu para dar um jeito de arrumar um atestado médico para mim em plena quinta-feira. É pq aquele dia fez sol e eu procrastinei...faltei no trabalho, menti, fui mal na prova...é o tipo de momento que flutua na membrana da mente quando olho o teto branco do meu quarto, quando vejo a Barra - Funda correr pela janela do trem; ai sinto vontade de contar para alguém, mas não sei o que dizer.

Entre as minhas idéias e o mundo, suponho, há um interstício intransponível. Uma catedral de afasia a ser atravessada. A única forma de reduzi-la é escrevendo - em palavras escritas fica mais fácil imprimir ao mundo exterior essa coisa impalpável que se move na mente quando olho o vazio. ( e então sinto inveja de quem sabe falar o que pensa como se fosse uma verdade simples e absoluta... como se para cada palavra dita apenas um sentido pudesse ser empregado por quem ouve... esse tipo de gente que entra em uma roda de conversa e em poucos segundos faz comentários tão superficiais e despretensiosos que tem-se a impressão de que eles mesmos propuseram os assuntos).

Mas é certo que ninguém leria um papel entregue por um jovem de olhos perdidos, olhos mais velhos que o resto do corpo, exceto, talvez, pelas mãos também velhas - como se os olhos e as mãos tivessem nascido antes e esperado alguns anos pelo resto do corpo. A solução seria sentar na calçada, a exemplo do que fazem os mendigos daquela cidade sem vento, e escrever a minha história no chão. Esperar que, ao invés de moedas oxidadas, me lessem.

Mas por quem eu transporia esse vão de idéias e palavras?"

5 de abr. de 2010

Amarelo

Ele era o irmão podre de Cristo. Herdara, em negativo, todas as características dos pais. Qualidades e efeitos perfeitamente opostos, como o negativo da Casa de Espelhos. Suspeitou-se de envolvimento com drogas, de participação em adultérios (seus e terceiros), coautoria nos mais diversos crimes. Dizia-se que topava qualquer coisa covarde - dai pôde-se excluir o rouba a banco, crime que exige coragem de herói.

Morreu na última quinta-feira por razões desconhecidas. Ninguém se empenhou muito em descobrir. No quarto cheirando a mofo em que foi encontrado, havia uma folha de papel e uma caneta... Ainda se difunde a idéia de que escreveria uma carta de Adeus, o bilhete clichê dos suicidas, mas a preguiça prevaleceu.

1 de abr. de 2010

Cachaça

Ele levantou, vasculhou o bolso do jeans e entregou uma nota de 2 e um montinho de moedas para a pedinte com olhos de crack, que fez cara de intrigada pela repentina mudança de atitude, já que 20 segundos antes ele negara-lhe esmola, agradeceu e seguiu em direção ao bar seguinte. O jovem voltou à roda e explicou que o seu santo, oxossi, havia ordenado que entregasse dinheiro à mulher.

Senti, na hora, o ímpeto de pegar uma garrafa de cerveja e estilhaçá-la na cabeça do rapaz, mas na mesa só havia copos plásticos. Desejo quase incontrolável de profanar-lhe as crenças e insultar-lhe os santos todos. A mesma ira voraz e passageira que nos acomete quando alguém fede em excesso ao nosso lado no metro.

Instantes depois, mais calmo, pensei - a mediocridade alia-se sem dificuldades à suposta mediunidade; metafísica religiosa e bom senso quase sempre contrapõem-se.

31 de mar. de 2010

Terremoto

Pediu pra que eu ficasse. Aceitei mais por não saber dizer não que por qualquer outro motivo. Falamos sobre astrologia, sexo tântrico, dança do ventre, amores passados. Interrompi o monólogo e levantei, anunciando outra vez minha partida. Fez cara de triste e foi ao quarto apanhar um casaco para me acompanhar até o portão.

Minuto depois, vi você voltar completamente nua à sala, empurrar-me de volta à poltrona, amassar com as suas coxas as minhas e dizer coisas sobre paixão.

Paixão – pensei eu – um dia acaba; um dia não muito distante, supus. E o que resta depois? Com quais palavras nos despediremos quando não houver mais “fica”?, quando a história dessa noite fria entrar para o hall dos amores passados?

Pensei, mas não disse. Permiti e me deixei levar. Ano mais tarde levantei da mesma poltrona e anunciei que partiria para não mais voltar. Você foi ao quarto e voltou de casaco (aquele verde que eu detestava). Acompanhou-me até o portão. Não dissemos palavra e não mais voltamos a nos encontrar. Aquela noite cheguei em casa com um ano de paixão rasa socado em uma sacola da Levi’s.

26 de mar. de 2010

Jardins

Não há mais razão para falar de você, como nunca, de fato, houve (descobri isso, tarde da noite, um ano e um dia depois de te conhecer em baixo daquele toldo chuvoso na Bela Cintra) mas ainda assim insisto em guardá-la em minha mente, como um amuleto ou um mau costume.

Comuns os dias em que, andando na sempre populosa Cidade, sinto um desejo incontrolável de esbarrar por acaso em você. Sei que uma entre as incontáveis mulheres ofegantes a caminhar pelas ruas dos Jardins é você - que gosta de alternar corridinhas e caminhadas, movendo-se de um jeito divertido, como se apreciasse cada passo, mas ao mesmo tempo com um semblante introspectivo: você corre remoendo as notícias que ouviu no rádio durante o café da manha.

Eliminando da rua todas os carros, talvez fique mais fácil te encontrar. Faço isso sem remorso, pouco me importando com o destino dos motoristas. Para garantir melhor visibilidade, elimino os carros estacionados também. Em um piscar de olhos mando embora os ônibus, com todos os rostos cinzentos de rotina colados nas janelas - porque com você a rotina era impensável e mesmo sentados mil vezes a ver o mesmo filme nos mesmos lugares do sofá, tudo era inédito e o segundo seguinte um eterno mistério.

Ainda no mesmo impulso, faço sumir os homens todos e as mulheres com menos de 20 e mais de 25. Dentre as mulheres restantes, deixo ficar as que caminham sozinhas (sem cachorros nem amigas), usam calças pretas de ginástica e ostentam longos cabelos ruivos.

Você surge virando uma esquina a 30 metros de distância: Adidas preto, faixa roxa nos cabelos, camiseta branca...aquela andar divertido.

Assim que tomo fôlego para gritar seu nome, um ipê amarelo te esconde. Temo. Você ressurge ainda mais linda e tenho certeza de que retocou a maquiagem enquanto estava atrás da árvore. A pele branca, o sorriso seguro de quem não se surpreende com facilidade, o sol ressaltando a pequena cicatriz do lápis que entrou no seu rosto.

Pára ao meu lado e diz, com naturalidade, "preciso devolver aquela tua gravata" . Pergunta como foi em Londres e, antes de ouvir a resposta, volta a correr dizendo que vai se atrasar para a aula de flauta. Passos depois fala mais quatro ou cinco palavras que ouço misturado à buzina de um carro.

Os elementos voltaram à Cidade e o encontro nunca ocorreu. A garota do andar divertido suicidou-se anos antes, por razões desconhecidas até hoje. Dizem testemunhas (o porteiro e uma moradora) que, milésimos de segundo antes de cair disforme no chão, cobriu com as mãos o rosto como de praxe fazem os suicidas.

Epílogo

Ignoro a existência de alguém que viva na mais completa inocência da verdade; alguém que, a exemplo das mais sacras figuras humanas, nunca mentiu. Não escrevo, entretando, na inútil tentativa de justificar essa falha tão comum à pessoa humana. Menos ainda quero expurgar das sociedades o valioso artifício que há tanto me acompanha.

Darei preferência - mas não exclusividade - à mentira híbrida e meramente recreativa; àquela que não tem a intenção de salvar ou trazer vantagens a quem a conta, mas quer apenas subtrair do mundo mais um fato real, ou acrescentar no mundo dos 'fatos reais' uma prova falsa.